domingo, 17 de abril de 2011

Fios e Pegadas

Fios e pegadas (Alsife Ezá)


"Viagem de cerca de duas horas. Caminho longo, cheio de curvas, já sabia o quanto seria entediante e desconfortável a jornada de volta naquele circular intermunicipal. Esperei que todos entrassem, até mesmo a senhora que chegou depois, meio ofegante, trazendo duas bolsas cheias de coisas valorosas, a julgar pela força com que se agarrava a elas. Paguei a tarifa, me sentei do lado direito, acomodei a mochila e o guarda chuva, para que não dançassem a cada curva apressada. Tirei o livro da mochila, aquele que comecei há dois dias e que me impelia à leitura urgente, quase viciada. Livro bom é como entorpecente. Abri, mudei o marcador para o meio do livro, li o último parágrafo já lido, a fim de reavivar a intensidade sensorial abruptamente cortada pela chegada do ônibus e pelo tilintar coletivo das moedas. Falatório em redor não atrapalha, mas sons financeiramente metálicos desconcentram minha leitura; vai entender. A iluminação é ruim, e procuro em volta um lugar melhor e logo ali, no lado esquerdo, um pouco à frente, um lugar vago, na verdade os dois, bem embaixo da melhor lâmpada lateral, que mais iluminava. Parecia reservado para mim. Juntei mochila, guarda-chuva, livro fechado entre o polegar e o médio, com o indicador marcando a posição. Sentei, acomodei, voltei no mesmo parágrafo revitalizador e segui a leitura.

Pessoas entram e saem, sentam e levantam, rostos comuns e indiferentes. Solavancos e paradas constantes me desviam da leitura por alguns instantes, é quando percebo a troca de rostos. Normalmente procuro por belos rostos e formas, para amenizar a chateação da viagem e descansar os olhos da leitura sob a luz deficiente. Mas neste itinerário, difícil se deleitar com belas visões, o que me faz voltar à leitura em poucos segundos. Realmente, o livro consegue ser muito mais fascinante que qualquer acaso feminino no momento, se considerar que meus olhos têm vontade própria em relação ao gênero oposto.

Quando reparo que já não há mais pessoas em pé e os lugares voltam a vagar, me dou conta que estou quase chegando ao meu destino, faltando talvez vinte ou trinta minutos. Poxa! Nem vi o tempo passar... Caramba! Eu li todas essas páginas mesmo? Senti orgulho de mim, intelectualmente envaidecido. Será que alguém reparara minha notória qualidade de leitor voraz? Talvez não, talvez sim, pouco importa. Leio apenas mais um trecho só até o final do capítulo; marco, fecho e guardo o livro, para finalmente descansar um pouco a visão e também não ser surpreendido pela chegada do meu ponto em meio a transes de absorção literária.

Olhando pela janela, nada me interessa. Volto os olhos para o interior. Olho as horas, faltam cerca de quinze minutos. Entre os poucos passageiros sem graça, vejo um coque dois assentos à frente do meu. Sem explicação, começo a reparar-lhe os detalhes.

Coque bem feito, redondamente alinhado, com alguns fios soltos. Adoro fios soltos, rebeldes contra a ordem imposta pelas mãos que modelam os cabelos. Mas estes não eram rebeldes... não, não eram. Estavam propositalmente soltos, compondo com a suave penugem da nuca singular e belo convite à apreciação. Que manchas são essas? Não, não... são tatuagens... Interessante! Na nuca, no lado esquerdo, pouco abaixo de onde termina a penugem capilar, apontando para trás da orelha. Não são pequenas estrelas alinhadas, como provas de uma moda frívola. São pequenas pegadas de gato, quatro ao todo, imitando um rastro felino. Delicadas, me fazem tentar revelar suas intenções. Pegadas de gato, de gata, gatinha, felina, tigresa... há mesmo quem saiba escolher bem seus adornos. Como se quisesse exibir seu código felino, trajava regata preta, de pouco tecido nas costas; se parece com roupa de ginástica: exibe os ombros bem desenhados, um pescoço fino e longo, musculatura sutil e firme.

Mais um solavanco. O coque começa a se desfazer. Cuidadosamente, as mãos se apresentam. Unhas longas, bem feitas. São rosas? Sim, são rosas. Há quanto tempo não vejo unhas pintadas de rosa; normalmente são desenhos milimétricos muito bonitinhos, mas nada femininos, apenas infantis. Dedos longos e finos, como as unhas. Mãos de pele lisa e firme, revelam a juventude da observada. Será bonita? A escuridão da pista impede a visão externa de qualquer coisa que chame sua atenção e a faça virar o rosto. E como quero vê-la!

As mãos começam um balet lento e gracioso. Uma segura o coque, a outra retira o elástico. O cabelo começa a ser desenrolado cuidadosamente. A cada volta desfeita, um brilho novo de mostra. Quanto brilho! Pude tocá-lo com os olhos, e sentir a maciez: cabelos incrivelmente sedosos, macios, brilhantes... só em comerciais de TV se vê cabelos assim, seria possível? Todo liberto, se mostra longo. Castanho, liso, macio, longo e... belo. As mãos parecem dançar: seguram suavemente e enrolam duas vezes sobre a base, prende um laço com o elástico, enrolam mais duas vezes, prende, e termina a delicada escultura em quatro amarras totais. Parece uma rosa acastanhada feita de fios de seda.

O vento seca meus olhos. Seca? Como assim? Não piscara desde o segundo ato, a apresentação das mãos. A cena causava-me furtiva catarse. Embriaguei-me do momento fugaz, entreguei-me à contemplação solitária da beleza alheia, sem ser percebido. Senti vergonha, melindrei-me comigo mesmo, vi-me ingenuamente fascinado. Correu em mim calafrios adolescentes.

O espetáculo ainda não terminou. Ao ajeitar o coque com leves tapinhas, fez questão de puxar alguns fios, que se desprenderam do conjunto e graciosamente caíam sobre o pescoço nu e embora estivessem na frente, evidenciavam aqueles rastros felinos. Justamente aqueles fios mais finos, menores e mais claros, que parecem nascer unicamente para atrair carícias preliminares de prazer maior.

Sinto mais calafrios. Procuro sentir-me, investigo mentalmente minhas sensações. Busco sinais. Será possível? Refino a busca, de fato, não há tumescencia. Sinto os calafrios, e os calores são imaginários. Sim! Isso é além, é mais... já começou além da carne! Deixar de admirar é impensado, meus olhos não conseguem se desviar. Como será o rosto? Por que não se vira por um segundo que seja? Não... não vai virar... as mãos já me viram, brincaram em meus pensamentos e avisaram-na de seu pobre expectador... Mas bem que podia presentear-me, dar chance a uma rápida e singela troca de olhar, permitir ofertar-lhe minha admiração.

Chega meu ponto, levanto, toco o sinal. Já em pé, espero a derradeira oportunidade de ver-lhe o semblante, quero e preciso guardá-la em minha mente, mas ela não vira. Um casal com filhinho se aproxima, dá a passagem, e minha cordialidade me obriga a insistir que desçam primeiro. Percebo a lentidão, penso que se tivesse descido primeiro, daria tempo de andar pelo lado de fora e simular uma travessia de calçada, apenas para retê-la nas retinas. Que infeliz cortês!

Desço, olho as horas. No curto trajeto até meu castelo, faço cálculos. Penso nela, naquela dama de cabelos belos, mãos dançantes e rastros felinos perturbadores. Tive certeza.

Por quase dezesseis minutos amei uma rosa de fios de seda e rastros felinos de tinta."

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